→ Criação e performance
Maikon K
→ Colaboradores
Colaboração dramatúrgica: Michelle Moura
Som: Kaj Duncan David
Luz: Nadja Naira
Espaço: Fernando Marés
Figurino: Faetusa Tirzah
Interlocução: Alejandro Ahmed
Produção: Greice Barros (Núcleo Produções Cultura e Desenvolvimento)
Distribuição/produção: Corpo Rastreado
Assistência de produção: Janaína Micheluzzi
Design gráfico: Adriana Alegria
Desenho/arte: Manuela Eichner
Video: Eli Firmeza
Fotografias: Thiago Liberdade (Portugal), Yuji Kodato (São Paulo), Eli Firmeza (Curitiba).
Residência: Programa InResidence Porto (PT)
Apoio: Copel
→ Duração
45 minutos
→ Incentivo
Projeto realizado com o apoio do Programa Estadual de Fomento e Incentivo à Cultura/Profice – Secretaria de Estado da Cultura – Governo do Estado do Paraná.
→ Estreou em março de 2020.
Vasculho esse interior com os olhos abertos da morte
Só ela pode ir além
Delírio cintilante
Não te darei nomes
O que sinto é indescritível e único
Vítima e carrasco se revezam como amantes
Mil pedaços alimentam o chão
Gozando ou sofrendo: o agora é espasmo
Carótida aberta
Joia
Jorro
Autocontemplação
Venha, sem piedade alguma
Ramificar a carne, exceder os sentidos, dilacerar o discurso, arruinar a imagem
O desejo de ser escombro
A súplica da implosão
Como fazer uma cadeira gemer.
A arte da performance é a perversão do corpo.
Neste solo, Maikon K investiga o estado de êxtase como dissolução da identidade humana, uma experiência corporal que rompe os limites das convenções sociais e códigos morais. O êxtase é um dos grandes tabus de nossas sociedades: regulado e controlado, é uma promessa que nunca se cumpre, contida em cada produto à venda, nas falas de líderes políticos e religiosos, nos aplicativos de sexo, na publicidade, na estética. Partindo da imobilidade e de um olhar multifocal, o performer ativa uma estranha presença que modula interior e exterior, controle e descontrole, embriaguez e intensidade.
Entrar na sala de espetáculos localizada no último andar da Alfaiataria [espaço de investigações e práticas artísticas multidisciplinares localizado em Curitiba, PR] para assistir à nova fase do projeto Enquanto somos humanos é como entrar em um labirinto de espelhos: os artifícios imagéticos ali arquitetados não mostram nada sobre a realidade que tomamos como objetiva. Eles, isso sim, perturbam a percepção cristalizada daquilo que chamamos de real. Maikon K (em Máquina Êxtase) e Michelle Moura (em Overtongue) constroem thrillers cinéticos, parte cômicos e parte macabros, que não se encerram ao deixar o espaço de apresentação, mas que permanecem acometendo o corpo daqueles que assistem.
[...]
Inventário de arrebatamentos
É como quem revela um segredo soterrado que Maikon K performa Máquina Êxtase. O corpo não é o que está soterrado, pois já se mostra monumental desde o começo. O corpo é um escombro do qual os segredos vazam, pingam, explodem, faíscam. O corpo de Maikon é uma máquina monumental que enferruja e colapsa sob a ação úmida e viscosa do arrebatamento. Esse arrebatamento, esse gozo, esse êxtase, no entanto, não são fenômenos externos que acometem o performer. São eles uma coisa que, de repente, não pode mais ser contida e principia a romper sua barragem. As pálpebras em convulsão, o pomo de adão perturbado, a coluna que serpenteia são como fumaça que se ergue da cratera antes da erupção de saliva que cadenciará a performance. É hipnótica a engrenagem motora que se põe a funcionar por meio da secreção bucal: fluido responsável principalmente pela facilitação do transporte do alimento para o interior do corpo, quando convertido em matéria performativa o cuspe que transborda do interior de Maikon insinua não uma vontade de engolir o mundo, mas a intenção de embeber esse mundo com aquilo que está em seu interior.
Nesse sentido, o soterramento proposto é uma imagem poderosa: algo soterrado é algo coberto por alguma coisa outra. O que está soterrado talvez – e esse talvez é fundamental – tenha ocupado a superfície um dia. No entanto, desta outra realidade onde o profundo era superfície, não se pode ter certeza, mas apenas supor, juntar pistas, imaginar como teria sido. Máquina Êxtase é essa imaginação encarnada.
A intensa relação que Maikon estabelece com uma cadeira – que de objeto utilizado se converte em extensão do corpo e de corporeidade estendida se transforma em vestígio de subjetividade – intensifica a compreensão do êxtase como transbordamento do de dentro e não como invasão operada pelo de fora. Em Máquina Êxtase, Maikon K instaura, na confusão de quem age sobre o que (seu corpo age sobre a cadeira ou cadeira passa a responder ao gozo do corpo?) imagens de dissolução de humanidade como as que o escultor Gian Francesco Bernini arranca do mármore em que esculpe os êxtases de Santa Teresa e de São Sebastião; ou como aquelas em que o fotógrafo Robert Mapplethorpe registra com luz e sombra os prazeres escatológicos de anônimos da metrópole nova-iorquina. Novamente uma ficção/fricção, aqui estabelecida no atrito entre o glorioso e o infame: Maikon não faz um exercício profanatório que macula um universo específico do sagrado. O que sucede é a composição de um inventário de arrebatamentos, tantos e tão variados que amortecem quem os testemunha. Nesse amortecimento operado pelo entusiasmo é que a obra toca, com os dedos lambuzados de baba, uma ferida aberta.
Os arrebatamentos constantes que atravessam cada vez mais as agendas cotidianas são inevitáveis de lembrar: quando pequenas máquinas como os celulares – que indexam e coletam cada vez mais dados de nossa subjetividade com nossa autorização – permitem que em todo lugar e a qualquer momento acessemos aplicativos sexuais, programas de auditório evangelizadores, vídeos pornográficos, sessões de descarrego, narrativas militantes lacradoras, agendamento de turismo alucinatório religioso, devassas morais virtualizadas, capitalizando e mercantilizando a própria possibilidade de suspensão de consciência, não há como deixar de perguntar o que restará para além da utilidade mensurável em moeda.
Na fabulação desta sobra, numa estética residual, em uma política da restidade, a imagem da serpente, tão pregnante em Maikon, reaparece de modo inusitado: como um ouroboros, uma cobra que devora a própria cauda e confunde princípio com término. Sujeito e objeto, corpo e cadeira, algo que é penetrado e algo que é engolido, uma interioridade que embebe o externo e um de fora visível que se converte em vestígio de um dentro invisível: é arrebatadora a capacidade dramatúrgica do solo de Maikon K em transformar práticas e discursos profundamente íntimos em alegoria – na mesma medida ancestral e futurista – relativa à dor e à delícia de existir.
Ficção da humanidade
Máquina Êxtase e Overtongue ativam uma espécie de auto-arqueologia, onde os corpos de Michelle e Maikon são simultaneamente cientista que investiga e sítio que é vasculhado. O som composto por Kaj Duncan David, a luz de Nadja Naira, o espaço de Fernando Marés e os figurinos assinados por Faetusa Tirzah são ferramentas poderosas nessa escavação, na medida em que não operam como moldura que suspende as obras como imagens recortadas; a sonoridade e a visualidade que estes artistas materializam agem no tempo e nos espaço que afeta o corpo de quem assiste como tremor secundário, que reverbera o intenso sismo que sucede no corpo de Maikon e de Michelle.
A título de epílogo, demoro mais um parágrafo na compreensão de ruína. O filósofo da arte Walter Benjamin – em muito influenciado pela intersecção entre sociologia e arquitetura que seu professor Georg Simmel articula – desenvolve, já sob a sombra do fascismo, a compreensão da ruína como uma construção da qual não se pode ter certeza se está sendo construída ou desmanchada.
Nada poderia se encaixar melhor nessa descrição do que a própria noção de humanidade arduamente esmiuçada por Michelle Moura e Maikon K. Não há certeza sobre a construção ou desmanche da humanidade, pois existir como tal é constante campo de força, tensionado pelo desejo e pela repulsa em relação à norma. Se para alguns a ficção da humanidade é limitação do qual se quer afastar, para outros é direito compulsoriamente negado. As hipóteses corpóreas que Overtongue e Máquina Êxtase materializam são potentes precisamente por sustentar essa tensão e não se render a um romantismo binário que negativa ou positiva a experiência humana. Uma das hipóteses é essa: ser humano é uma ficção que não se sabe se ainda está em tempo de salvar ou mais valeria dinamitar de uma vez. O que sabemos é que dela temos tanto nojo que chega a nos fazer gozar. E vice-versa.
*Anderson do Carmo é artista e pesquisador das artes, doutorando no PPGT-UDESC (FAPESC). Vive e trabalha em Florianópolis (SC).