Mostra final de processo da residência artística Máquina Êxtase.
Programa Inresidence, Porto, Portugal - na sede da companhia Circulando.
Foto: Thiago Liberdade
Maikon K é Hipólito, na peça Fedra em: o fantástico mundo de hipólito.
Foto: Amanda Vicentini
Maikon K arquiteta a liberdade em "Neblina Canibal". Texto de Castiano Castilho sobre a performance apresentada em 18/08/2018.
https://www.bemparana.com.br/blog/pista1/post/maikon-k-arquiteta-a-liberdade-em-neblina-canibal
Foto: Elenize Desgeniski
O corpo é meu início. Matéria-prima desconhecida. Desprogramar esse amálgama de hábitos, educação e crenças. Adentrar seu instinto, memória, conhecimento e potência. Vibrar suas camadas. Carne elétrica, sólida, atômica. Genoma de metamorfoses. Humano por um instante. Todas as coisas agora. Descobrir até onde esse corpo vai, até onde toca.
Conceitos e ideias precisam encarnar.
A performance não se sujeita a categorias analíticas. Sua imagem nunca se completa. Matéria escura da arte, vazio entre os átomos, buraco negro gravitacional para onde as coisas retornam e ressurgem reconfiguradas. Onde as probabilidades coexistem. Corpo-fresta. Lugar de passagem. O performer é agora uma criatura. Puro desejo. Máquina mística. Ascensão da crueza. Açougue de todas as certezas.
O xamã foi o primeiro performer, antes de todas as vanguardas. Ele não separa arte, ciência e espiritualidade. Ele não nomeia a vida. Ele cria linguagens para abrir buracos de minhoca para outras realidades. Não o vejo como detentor do sagrado. Ele é um pesquisador de linguagens, amplia os usos dos sentidos. Reinventa o corpo. Ele trepa com o universo (toda magia é um ato sexual). Ele se comunica com todas as formas de vida e sabe que tudo comunica. Quando dança, canta, incorpora, se torna a ponte: do material ao imaterial. Seu corpo é tudo o que ele tem. Quando constrói um instrumento, entra na terra, caminha na mata, jejua, toca em outra pessoa, prepara uma poção, fuma seu cachimbo, conta uma história, marca seu corpo, ele sabe que toda ação reverbera nesta e em outras dimensões. Invisíveis, mas perceptíveis.
Isso não é uma teoria. Isso é uma cirurgia.
O performer é o xamã da descrença, em constante autoiniciação. Sua fé está no corpo. Sua terapêutica é o choque dos sentidos. O performer é seu próprio ídolo imolado, seu próprio boneco vodu. Instrumentaliza seu corpo para acessar estados de ser incomuns. Porque o cotidiano é uma carcaça pesada, opaca, que deve ser continuamente estraçalhada. Isso exige um esforço sobre-humano. Isso exige morrer várias vezes.
Não se trata de transcender ou negar o mundo. Mas expandi-lo, ampliar a ideia que se tem de mundo. Chegar até sua medula. E engoli-la.
O xamã testa em si antes de oferecer ao outro. Como performer, faço o mesmo. Eu quero confrontar o eu. No fundo, o artista é um egoísta. Ele quer superar a si mesmo. Sua condição é um paradoxo: sua busca é extremamente pessoal, mas só ganha sentido quando compartilhada. É no outro que seu trabalho precisa viver.
Cada trabalho pede um tipo de preparo/despreparo. No processo para DNA de DAN, convidei Kysy Fischer para colaborar na pesquisa corporal. A meta era: me preparar para estar despreparado diante do público. Criar uma memória corporal para então abandoná-la, deixá-la agir em mim. Passar por minha iniciação para estar apto a instaurar um rito coletivo. Coluna, olhar, respirar, chacras, pele-ambiente, hipnose, ritmos, incorporar imagens e devolvê-las ao mundo.
A performance de longa duração foi o desafio colocado por Marina. Foi como descobrir algo que sempre esteve diante dos meus olhos. Quando estou pesquisando, é comum que eu fique horas numa busca, mas no momento de converter essa experiência em algo público, isso é editado e condensado. A longa duração foge da lógica comercial, pois instala o tempo ritual, propõe ao público e ao artista outros pactos e relações com a obra. Substitui o consumo pela experiência. Não é uma moeda de troca fácil, e é difícil encontrar uma estrutura (instituição) que acolha sua proposta (cabe ao performer abrir esses espaços). O comum é trabalharmos com muitos materiais e questões, mas raramente com o tempo. E o tempo é um formatador e alterador de consciência. O tempo desafia todas as formas.
A longa duração em DNA de DAN guiou a lógica da minha presença e a relação com o público. Como sustentar e atualizar minha presença por tanto tempo? Eu não estou me apresentando, estou presente. Mesmo que eu não “faça” algo, como evidenciar que muito já está acontecendo, independente de minha vontade?
Camadas de percepção vão se abrindo sob a pressão do tempo. Existimos no tempo. Quando a percepção do tempo se transforma, também nos transformamos.
“Não há tempo na presença”, disse Marina durante o Cleaning the House. Há uma profundidade no tempo, que é sentida quando desaceleramos. Na verdade, no parar sempre há movimento: é como ouvir um rio que corre subterrâneo. A mente cotidiana quer conter esse fluxo, pois não é capaz de racionalizá-lo. Mergulhamos na presença quando entramos no campo da sensação. “Não há tempo na presença” quer dizer: nós somos tempo.
No workshop, eu e os outros performers fomos levados a pesquisar a presença de forma radical: suspendendo hábitos (comer, falar, ver) e prolongando ações extremas (andar lentamente, acordar e nadar num lago gelado, contar grãos de arroz, escutar o ambiente, olhar fixamente para os olhos do outro). Suprimir hábitos nos confronta com padrões sociais enraizados no corpo, que geram necessidades e automatismos, que por sua vez guiam nossas ações, para onde converge grande parte de nossa energia. O performer precisa ter disponível toda sua energia pessoal, conhecer os mecanismos que condicionam seu corpo. As ações duracionais colocam esse corpo num paradoxo: agir com persistência numa tarefa sem um objetivo funcional a cumprir. Percebi isso com clareza ao andar lentamente por horas. Em certo momento, pensei: “Não há objetivo, não preciso chegar a lugar nenhum”. Isso ativou um estado de presença sem necessidades, colocando o corpo em novas relações com o ambiente. A ação é um pretexto para focar o presente, um dispositivo para desestabilizar padrões. As práticas que Marina propõe, desvinculadas de seu contexto espiritual original, servem como meios de ampliar os sentidos. Assim, esse corpo, quando em performance, poderá lidar com camadas mais amplas de percepção. Essa compreensão da presença que se aprofunda no tempo transformou minha atitude em performance. A ação duradoura mobiliza energia intensa, cabe ao performer escolher o que fazer com ela e de que modo. Assim como no exercício de andar lentamente, ao performar “não há um objetivo a ser realizado”, a ação é um meio de cavar estados de percepção desconhecidos. E o público percebe isso. Percebe com o corpo.
O mundo não é ideia. É sensação. A sensação é a inteligência do corpo. Com o corpo, tecer novos hologramas de realidade.
Criar realidades é coisa pra quem tem bagos e útero. Quero ter bagos e útero.
O público é a chave que dá sentido ao rito. Na troca com o outro a energia do performer circula em rede: há comunicação. Uma comunicação incomum. Descobri espaços “vazios”, onde eu não precisava me preocupar em fazer, mas devia perceber o que já estava acontecendo e deixar que aquilo me atravessasse e me modificasse. Isso ficou evidente quando eu e público apenas nos olhávamos, a energia se adensava entre nós e atuava de diferentes maneiras em nossos corpos (tremor, lágrima, respiração alterada, sons). Um universo compartilhado se expandia entre nós. Percebíamos que algo estava acontecendo. E isso era muito. E não era conceitual. E talvez esse momento não fosse arte, nem ciência, nem espiritualidade. Talvez fosse uma experiência que cada um vive conforme seus sentidos. Talvez fosse performance.