→ Criação, performance e composições
Maikon K

→ Colaboradores
Som: Beto Kloster
Acompanhamento de processo: Patricia Saravy
Fotos: Lauro Borges
Vídeo: Cleber Braga

→ Duração
1h30

Musical xamânico-terrorista para uma sala de aula.

Um antimusical. Uma aula antiacadêmica. Numa sala da mais antiga universidade do Brasil, uma estranha conferência. Um ovo. Um livro que contém tudo. Um retroprojetor. Uma mesa. Um quadro-negro. O mestre em Sociologia – a ciência da ilusão, arqueologia do câncer – irá dançar e lecionar para sua atenta plateia de alunos.

Guilhotina é uma resposta à academia. Não a academia de malhar corpos, mas a academia de malhar cérebros. Esteiras rolantes de massa encefálica, livros, bundas nas cadeiras, escolioses, bocejos, normas técnicas, citações. É uma revolta do corpo, uma explosão antiteórica, uma convulsão epistemológica. Este trabalho foi criado para acontecer em salas de universidades. Só é necessário uma mesa, uma cadeira e uma turma de alunos.

Estreou em 2007 no anfiteatro 100 da Universidade Federal do Paraná, campus Reitoria.

TEXTO DA PERFORMANCE

Eu tenho uma teoria. Esta manhã acordei e fui ao banheiro esvaziar meus intestinos. Foi então que vi. A luz. Compreendi então qual é a base de nossa sociedade, o pilar fundador da civilização. Aquilo que possibilitou sermos o que somos hoje. O vaso sanitário. Sim, esse simples mecanismo presente em todas as moradias civilizadas. No momento em que apertamos o botão de uma descarga, ocorre o que eu chamo de “efeito matrix” ou “a ilusão elementar”. É muito simples e eu explico. Aqueles dejetos, com os quais seríamos obrigados a manter contato, sim, obrigados, simplesmente desaparecem, como que por encanto, como que por magia, como que por um passe de mágica, como que por um poder sobrenatural. É então que podemos ser cidadãos livres, tranquilos, voltar aos nossos afazeres diários. E pra onde vai toda essa merda? Não importa. Não nos interessa. Porque se soubéssemos, iríamos enlouquecer. Teríamos que encarar a verdadeira face do nosso ser.

TEXTO CRÍTICO:

A ARMA BRANCA DA SAPIÊNCIA. Guilhotina, Gerúndio e nós: cabeças rolantes

Por Henrique Saidel

Cabeças cortadas. Pernas cortadas. Braços cortados. Pensamentos cortados. Almas cortadas. Sangue, esperma, saliva, humores, clara e gema. A lâmina desce, irrefreável e irretocável, e perpetra a carnificina. Pedaços humanos são destrinchados e distribuídos deliciosamente entre todos. Ali, sentado, num falso repouso, um homem, um corpo estranho apoiado na estática mesa. É Hans Silva (Bacharel em Semiótica Analítica pela USP, com especialização na Oxford University em Análise de Níveis de Consciência, Doutor pela UNICAMP em Sociologia Complexa Simbiótica, com especialização em Metanálise do Conhecimento), o carrasco/vítima que lecionará e dançará para nós. O cadafalso está preparado.
Guilhotina não é arma de destruição em massa. Guilhotina é arma de destruição individual. Um por um. Guilhotina é espetáculo, praça pública, multidão de curiosos, cabeça no cesto, corpo esfastelado. Um corpo e uma cabeça diante da multidão, espetáculo da morte, da aniquilação, da crueza e da beleza da morte. A lâmina separa o corpo da cabeça, que ainda tem alguns segundos de consciência – preciosos instantes de epifania. Seria guilhotina uma arma branca?
Não estamos diante de um simples espetáculo de teatro, dentro da programação de um festival qualquer, apresentado em uma sala de aula qualquer. Sequer estamos diante de algo. Estamos sim inseridos e absorvidos em uma situação, em um acontecimento artístico único e inapelável. O ator/professor/xamã Maikon K transmuta-se em Hans Silva, e nós, espectadores/alunos/fiéis, também fazemos parte do espetáculo. Espetáculo da crueza e da beleza da morte. O que se passa dentro do auditório/sala de aula da Reitoria da UFPR em pouco mais de uma hora é uma sequência hermética de cenas em que o mestre em sociologia – ciência da ilusão, arqueologia do câncer – e em outras tantas ciências apresenta e vivencia sua concepção de mundo. Concepção que trai a si mesma, que cria seus próprios monstros, seu próprio colapso. A trajetória cíclica do nascimento à morte, da ignorância à ilustração, do desgosto ao prazer. Extremos que se tocam e se fundem – a morte é o nascimento, a ilustração é a ignorância, o prazer é o desgosto.
Além dos textos, complexos, recheados de críticas irônicas ao academicismo cartesiano limitado, a dramaturgia verbal/sonora é composta por cantos (hinos) entoados à capela pelo ator. E o que num primeiro momento poderia soar forçado, canastrão (tanto numa tentativa virtuosística, quanto numa relação pseudo-ritualística), impõe-se como força pulsional, deflagradora e potencializadora de conflitos e sensações. A música brota da garganta e do peito monstruosos de Maikon e ressoa violenta na pele e nos sentidos de todos que ouvem. A invocação xamânica de seres e elementos transcendentes é confrontada com tiradas irônicas implacáveis – estrutura que dá força à dramaturgia.
Os elementos de cena são econômicos, porém contundentes. Uma grande e pesada mesa de madeira, que, ao mesmo tempo em que serve de apoio/barreira/proteção, é manipulada e sacudida vorazmente durante toda a peça. Um cesto de lixo vermelho, comum, extremamente comum, que aparece despretensioso num canto da sala, mas que carrega em si objetos e significações nada sutis. Uma tela de projeção que desce e sobe eletronicamente, suavemente, marcando uma ruptura trágica e debochada no plano físico e real da performance. Um retroprojetor, onde o professor Silva desenha uma pueril e sádica paisagem. Um quadro negro onde são escritas e apagadas mensagens de variáveis sentidos. Aqui, todos os elementos são os de uso estrito da persona Hans Silva – opção que dialoga muito bem com o aparente barroquismo do roteiro.
A construção (e manutenção) corporal também é item de grande destaque na montagem. O corpo é vivo, respirante e transpirante, enraizado no presente. Um corpo sem passado e sem futuro, um corpo real. A partitura apresentada é precisa, rica em detalhes, ela acompanha e pensa o texto falado. Elemento dramatizante, o trabalho corporal amarra os textos, músicas e manifestos ao universo do teatro – universo da ação, da presentificação. A dança de um corpo que se coloca como mais um signo (ou seria símbolo?) do espetáculo. Multi-paisagem de sentidos.
O ator coloca-se, então, como regente máximo (não necessariamente plenipotente: ele também está sujeito às intempéries) desse hiper-fluxo de melodias, imagens, palavras e contextos. E eis que vemos surgir diante de nós um ser imenso, irresistível, absoluto em sua energia criativa, incitante e efusivo – o ser Hans, o ser Maikon. Ator com clara e consistente pesquisa, juntamente com o grupo Gerúndio, Maikon K é um caso raro (infelizmente) de ator que não se vê apenas como ator, mas como artista, e que conduz ele próprio sua trajetória e suas investigações, sempre se aprofundando, sempre se enriquecendo. Em um deserto árido povoado por atores e atrizes dóceis, que aguardam ingênua e perversamente o convite ou a iniciativa de algum diretor/produtor, que se submetem cega e confortavelmente às vontades do tal diretor/produtor (em uma, de fato, sub-espécie de prostituição), encontrar performers como Maikon K é re-encontrar a esperança na arte, no fazer teatral, no ofício quase heróico do ator. Um ator que assume o seu papel de criador, de pesquisador, e, principalmente, de indivíduo pleno de potencialidades e vitalidade.
Guilhotina é, portanto, avessa a descrições elementares, frias. Guilhotina é espetáculo grávido, como todo espetáculo deve ser. E como tal, exige e se aproveita tacitamente da fertilidade do próprio público. O sêmem e os óvulos gerados e expelidos por Guilhotina fecundam-se no ventre úmido do espectador, que sai da sala de aula também grávido, prenhe de vida, prenhe de morte, prenhe de arte. Só nos resta gestar essa criança, esse ser misterioso e aquoso que agora habita nosso organismo. Para que um dia, quem sabe logo após o parto, destrinchemos a sua carne macia e distribuamos deliciosamente entre todos.

Guilhotina
a verdade trepa com a mentira